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Marafações de uma Louletana

Um espaço dedicado a Loulé e às suas gentes!

Marafações de uma Louletana

Um espaço dedicado a Loulé e às suas gentes!

O nosso património - O enigmático Palácio da Fonte da Pipa

06.11.17, Lígia Laginha

 

 

Nas nossas memórias, quando se fala do Palácio da Fonte da Pipa, invade-nos um misto de emoções… somos como que atraídos para um mundo oculto, de encantamentos, de mistério… de histórias que ficaram por contar. Quem lá viveu, quem lá morreu… quem são aquelas almas penadas que por lá vagueiam… queremos vê-los… não os queremos ver. Não deve haver louletano que não tenha já ousado explorar aquele palácio abandonado, cujas torres com os seus pináculos, lembravam-nos cenários de terror. Buscam-se túneis e passagens secretas, sons misteriosos, vozes de crianças e patadas de cavalos, pianos que tocam sozinhos… mito, realidade? O que quer que fosse, foi crescendo e alimentando o imaginário coletivo desde há mais de cem anos. 

Sabe-se que foi mandado construir por Marçal Pacheco, louletano, nascido em 1847, eloquente advogado e brilhante político. No exercício das suas funções ocupou os cargos de Presidente da Câmara de Loulé, deputado do Partido Regenerador pelo círculo de Macedo de Cavaleiros, Sub-diretor Geral do Ministério da Justiça, Presidente do Tribunal do Contencioso Administrativo do distrito de Lisboa, entre outros importantes cargos. Viu o seu talento ser reconhecido pelo Rei D. Luís, quando foi nomeado Par Vitalício do Reino. 

Nas suas viagens de trabalho ao estrangeiro aproveitava para fazer a estadia na estância termal de Vichy (França), em cujas águas encontrava alívio para o seu problema renal. Terá sido aí, no Vale do Loire, que se terá inspirado para edificar, na sua terra natal, um solar para viver com a sua família, à imagem daqueles imponentes palácios e castelos renascentistas que o terão deslumbrado por aquelas paragens.

Para a concretização do seu sonho, adquiriu terras nos arredores da vila: uma das parcelas, onde existia uma fonte – a Fonte da Pipa – foi adquirida aos Condes de Alte. Afastado da “civilização” em pleno ambiente campestre, foi aí que visualizou o seu refúgio, longe da euforia da grande metrópole. 

Marçal Pacheco batizou-a por Quinta da Esperança. Desconhece-se o autor do projeto, sabemos apenas que o construtor foi Zé Verdugo, reconhecido empreiteiro, responsável por inúmeras obras de vulto em Loulé.

A sua construção respeitou um traço arquitetónico e decorativo muito em voga nos finais do século XIX – o revivalismo dos estilos artísticos do passado, bem ao sabor da burguesia endinheirada. Da sua fachada sóbria destacavam-se os dois pináculos neogóticos revestidos com telha, como as cotas de malha dos soldados medievais. O telhado, amuralhado com ameias, lembrava os castelos medievais. A sua arquitetura distinguia-se em originalidade das casas apalaçadas da malha urbana da vila, chamando a atenção a quem por lá passa. A inscrição em latim à entrada «OTIA TVTA» - o prazer é teu, diverte-te – convida-nos a entrar: o seu interior prende-nos os sentidos! Os vitrais e arcos neogóticos com capitéis coríntios misturam-se com motivos de inspiração árabe. As paredes e tetos de todos os espaços da habitação foram exuberantemente revestidos a frescos de inspiração rocaille, com temáticas diferentes, usando motivos florais, agrícolas, elementos alusivos ao desporto, naturezas-mortas… vigorando o eclecticismo muito habitual na época neste tipo de construções. 

O autor da pintura mural registou, para a posteridade, o seu trabalho no teto do salão do piso inferior: «Pereira Cão / 1875» - Marçal Pacheco escolheu um dos melhores artistas plásticos do país para a decoração do seu palacete. José Maria Pereira Júnior (1841-1921), conhecido no meio artístico por Pereira Cão, foi um prestigiado pintor e decorador português da época do romantismo, tendo deixado obra feita no Palácio da Ajuda, no Teatro Nacional de São Carlos, nos Paços do Concelho de Lisboa, entre muitos outros sítios. Participou na Exposição Universal de Paris de 1889 com a decoração do pavilhão português, onde ganhou a medalha de ouro. Contavam-se entre os seus amigos José Malhoa, os irmãos Bordalo Pinheiro e até o Rei D. Carlos, que, pelo seu percurso, o agraciou com o Grau de Cavaleiro da Ordem de Cristo. 

Presume-se que Marçal Pacheco não tenha medido esforços na decoração do seu palacete, na esperança de um dia ter o prazer de poder receber o Rei, numa das suas eventuais visitas ao Algarve. Esse dia nunca chegou a acontecer: D. Carlos e D. Amélia pernoitaram no Palácio de Estoi aquando da sua visita à região, em 1897, – um ano após o falecimento de Marçal Pacheco. 

O palacete foi também palco de alguns episódios marcantes para os louletanos: um deles foi uma desavença entre os músicos da filarmónica louletana convidada a animar o banquete de homenagem a Marçal Pacheco aquando da sua nomeação como Par Vitalício do Reino. Corria o ano de 1875, quando um grupo de músicos, dissidentes por motivos políticos, se recusou a tocar, originando uma rixa – nascia assim a Sociedade Filarmónica Artistas de Minerva. Os restantes elementos passaram a denominar-se Sociedade Filarmónica União Marçal Pacheco.

Após o falecimento de Marçal Pacheco, a esposa Hercília Cordeiro e os seus filhos não tiveram meios financeiros para assegurar a propriedade, votando-a ao abandono. Anos mais tarde, em 1918, ocorreu um surto de gripe espanhola, a pneumónica. Loulé não ficou imune: havendo apenas um médico para tratar um crescente número de doentes, foi necessário recorrer ao plano de contingência – urgia separar os doentes afetados dos sãos. Conta Isilda Martins que «A “morte” personificada na carroça da Câmara (do Faísca) arrancava dos lares os entes queridos». Foram tempos de extrema angústia, os familiares escondiam os seus doentes em locais secretos para que não fossem carregados na “carroça do Faísca” e despejados em valas comuns, maioritariamente na Quinta da Fonte da Pipa. Este acontecimento deve ter alimentado a lenda de “assombramento” e de que dá má sorte a quem a possuir, «maldição resultante de aí terem sido enterrados doentes agonizantes», segundo Isilda Martins. 

De facto, a Quinta da Esperança de Marçal Pacheco passou por muitas mãos sem nunca se ter verificado uma ocupação feliz. A casa é vendida em 1920 a Manuel Dias Sancho, um banqueiro Sambrazense. Este providencia a electrificação da propriedade; a conclusão da decoração mural da sala de música que tinha ficado inacabada; e os arranjos exteriores, tendo mandado construir o muro com banco embutido na zona do jardim dando um toque de originalidade ao estilo kitch burguês da altura. A decoração com fragmentos de conchas e porcelanas, estampas antigas e inscrições que revestem o muro continuam a atrair as atenções.

Os reflexos do crash da bolsa de 1929 levaram o banqueiro à bancarrota e todos os seus bens foram confiscados pela então criada sociedade Banco da Algarve – o palacete entrou no rol. A Quinta foi entretanto vendida ao abastado empreiteiro de estradas Francisco Guerreiro Pereira, que também deixou melhoramentos: mandou plantar nas traseiras da propriedade um frondoso jardim com vários exemplares de vegetação exótica que trouxe das suas viagens a África e Brasil. Foi o seu herdeiro, o Dr. Guerreiro Pereira, que vendeu a quinta aos atuais proprietários, em 1981.

Entretanto, aquando da Liberdade, o palacete, já denunciando abandono, foi ocupado pela LUAR (Liga de Unidade e Ação Revolucionária). Consta que terá sido nesta ocupação que o palacete terá sofrido danos avultados.

A Sociedade Quinta da Fonte da Pipa, Urbanizações, Lda., uma empresa de capitais estrangeiros, adquire, em 1981, a propriedade para a edificação de um visionário e ambicioso projeto de urbanização nos cerca de 27 hectares da propriedade. Para tal, contrata uma equipa de restauro no sentido de devolver ao palacete a dignidade dos seus tempos áureos. Este projecto, abraçado com grande entusiasmo pelos proprietários fica a aguardar pela prometida alteração do Plano Diretor Municipal, que lhes permitiria avançar para a conclusão do projeto. A grande inauguração com a apresentação da maquete dá-se em 1987, contando com a presença de grandes individualidades nacionais e estrangeiras.

Trinta anos volvidos e eis que, no dia 24 de Janeiro de 2017, Loulé acorda com a notícia tenebrosa de que a sua Fonte da Pipa se estava a consumir em chamas. Foi um dia de grande consternação – perdemos, da forma mais trágica, aquele que foi um dos mais significativos espaços de memória … sentimo-nos todos mais pobres. Perdeu-se um património impar na região e, quiçá, no país.

Termina assim uma história bem à moda shakespeariana: todos aqueles que foram tocados pelo encantamento da Fonte da Pipa, viveram, cada um da sua forma, a sua história de amor… e de tragédia. Ter-se-á finalmente consumado a profecia da maldição?...

 

Nota: Artigo da autoria da minha colega e amiga Helga Serôdio publicado na Revista Raízes n.º 5. Podem ler a revista na íntegra aqui