Artes de antigamente - D.ª Aldegundes, a última esparteira de Alte
09.05.20, Lígia Laginha
Nas ruas românticas da aldeia de Alte, de calçadas tradicionais e empedrados, ecoou durante muito tempo, o som das maças de pisar o esparto, atividade que marcou a vivência económica e social de toda a freguesia, constituindo a ocupação principal logo a seguir à agricultura.
O esparto podia ser trabalhado batido ou em cru. Para ser batido tinha que estar demolhado durante vários dias nas levadas da ribeira (quando fosse ao fundo é porque já estava bom), depois era retirado, abriam-se os monches/manchos, que se colocavam em pé, e enxugavam nas suas margens (mas não completamente). De seguida, ainda brando, o monche/mancho era colocado sobre um pisadoiro (pedra calcária), por cima deste passava uma corda (tamissa) para o suster, que numa extremidade estava presa à pedra e na outra era presa no pé de quem ía laborar. O esparto era pisado horas a fio, nas ruas e largos da aldeia e sobretudo na Rua dos Pisadoiros, com uma maça de azinho e os monches/manchos eram virados constantemente para os abrir até que a parte lenhosa da planta fosse eliminada, de forma a que ficasse macia e espalmada para não ferir as mãos de quem o torcia.
Era um trabalho longo e penoso feito, principalmente, por mulheres, desde as primeiras horas da madrugada, até ao nascer do sol. À noite, nos serões à lareira ou nos pátios da aldeia, as mulheres torciam-no entre as suas mãos calosas, numa delicada e fina baracinha, que era esticada de árvore a árvore, medida em 10 braças e depois de acatornada era limpa com uma tesoura (ao desperdício chamavam-lhe tochas). Quando a arroba já estava toda trabalhada era entregue ao "dono do esparto", onde o tinham ido buscar em bruto e ganhavam a quantia de 20$00, corria a década de 30/40, do século passado. Este processo estava pronto em menos de uma semana e apesar de ser um trabalho, maioritariamente da mulher, esta contava com a ajuda de toda a família. Essa baracinha era utilizada para redes de gado (ovelhas), redes de pesca, seiras (transporte do figo), alcofas ou alcofões (para o transporte de terra ou cal), esteiras, seirões (para os lagares), sacos, armações (para a cortiça), tapetes, entre outras. Peças essas que eram "encomendadas" pelos "donos do esparto" às mulheres que tinham mais habilidade. O resultado do seu labor e perfeição, seria depois comercializado pelos donos do esparto, em Alte, Benafim e Loulé.
A história do esparto, confunde-se com a história de Alte. Ainda hoje esta história está viva e Aldegundes Gomes, das Sarnadas, é um exemplo de como o esparto marcou a identidade de Alte. A última artesã de esparto de Alte, embora residindo numa região com uma cultura na produção do esparto, não é uma descendente direta desse conhecimento ancestral, apesar de seu pai ter trabalhado num armazém em Alte, pesando o esparto que as pessoas levavam e que depois traziam trabalhado em baraço. Representando uma das últimas conhecedoras do trabalho do esparto em Alte, o seu contacto com essa técnica iniciou-se em meados dos anos 60, já com propósitos turísticos: informa que o seu trabalho se inspirou inicialmente por uma cabeça de burro proveniente de um artesão espanhol. E assim foi aprendendo à sua custa, Daí prosseguiu com outras peças copiadas de revistas. Adquiria a matéria-prima a um armazém de Faro, que, por sua vez, era adquirido em grande parte à Espanha e a Marrocos. Havia uma "linha de produção" em que eram recrutadas artesãs locais para produzirem as tranças (com o esparto pisado), a empreita (com o esparto cru) e afins, nas suas próprias casas, que, por sua vez, eram entregues a Aldegundes Gomes que as cosia com fio de guita dando-lhes forma. O esparto era comprado já demolhado e batido, o que o tornava mais maleável. Nas palavras da especialista: "Trabalhar o esparto é uma arte e dedicamos amor aquilo que estamos fazendo." As peças, umas decorativas e outras utilitárias, desde tapetes, galinhas, burros, cabeças de burro a alcofas, eram vendidas para armazéns de Loulé e houve alturas em que as encomendas eram superiores à capacidade de produção. Esta artesã afirma que este trabalho era sobretudo feminino. A mesma assume que não irá deixar descendência nesta técnica: o esparto é muito "trabalhoso" e não dá rendimento. Também as vicissitudes económicas e a escassez em matéria-prima são uma condicionante para o seu futuro. Segundo Aldegundes Gomes, o comércio chinês invadiu o mercado com peças mais baratas e de pouca qualidade, aniquilando a produção local. É com pena que vê esta arte "esmorecer".
Nota:
1. Texto da autoria de Sónia Silva e Helga Serôdio publicado na revista Raízes n.º 4 que pode ler na integra aqui.