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Marafações de uma Louletana

Um espaço dedicado a Loulé e às suas gentes!

Marafações de uma Louletana

Um espaço dedicado a Loulé e às suas gentes!

A mercearia do Sr. Bate-Pezinho

04.05.20, Lígia Laginha


Percorrendo as ruas de Loulé, reencontramo-nos com os lugares que habitam a nossa memória... a rua cuja calçada calcorreamos tantas vezes a caminho da escola. A fachada que outrora imponente, agora ameaça a ruína, ou mesmo aqueles aromas... o da padaria, com o seu pão à espera do primeiro freguês, ou mesmo aquela mercearia antiga, com as suas originais estantes e balcão de madeira de onde ainda sentimos saudosamente aquele misto de aromas do café de borra, do sabonete, do detergente para a roupa... aquele aroma indecifrável que evoca as coisas boas que, de forma discreta, nos acompanharam e que já quase não sentimos. 
Essa nostalgia é alimentada quando percorremos a Rua José Fernandes Guerreiro, e encontramos junto ao Mercado, a Casa Portuguesa. A sua montra diz-nos que existe desde 1908 - ainda no tempo dos reis. Lá dentro dá-se o reencontro com o passado... ei-las, as latas de conserva embrulhadas em papel, o bacalhau descansando na bancada, a pasta Couto, o sabão Clarim... e o tal balcão em madeira. 
Atrás do balcão espera-nos o merceeiro Manuel António Guerreiro com uma história para contar. Começa por nos dizer que herdou o nome do seu avô, fundador do negócio e cujo retrato, pendurado na parede, observa o vaivém do seu estabelecimento. Conta-nos que até à localização atual, a mercearia conheceu três locais: iniciou o ofício no sítio do Vale Telheiro, junto à pedreira, em 1908. Após dois anos, já na República instalou-se no início da Avenida José da Costa Mealha, zona de terreiro e hortas, quando ainda não se vislumbrava que aí pudesse, alguns anos depois, nascer uma portentosa avenida. Dois ou três anos corridos e muda-se novamente: durante 52 anos aviara a clientela no local onde hoje se encontra a Linadel. 




Inicialmente não foi fácil, recorda o seu pai Francisco Miguel Guerreiro, com os seus 89 anos. A implantação do mercado municipal não atraiu logo a clientela para aquela nova zona comercial, o que levou a que algumas portas tivessem que fechar. O povo estava acostumado a aviar-se mais abaixo, entre o Largo Bernardo Lopes e o Largo Chafariz. Valeu-lhe a lenta mudança dos hábitos. Aí cresceram os filhos do fundador, conhecido por Bate-pezinho - alcunha herdada do seu pai, exímio animador de bailaricos que acompanhava os acordes da música com o bater do pé. Já na maioridade, e seguindo o ofício do seu pai, os irmãos assumem o negócio em sociedade. Em 1965, estes mudam o estabelecimento para o número 18 da Rua José Fernandes Guerreiro, local onde ainda hoje se encontra. Volvidos 15 anos, já em 1980, a sociedade de irmãos é desfeita, assumindo Francisco Miguel Guerreiro a gerência do negócio. Os três filhos já crescidos, ocupam os tempos livres da escola ajudando o pai. Casa de boa clientela, toda a mão-de-obra é bastante bem-vinda. Os fregueses vinham do campo e da vila para se aviarem do que precisavam: a ração para o gado, a farinha para o pão, o toucinho do porco caseiro que jazia na salgadeira, o vinho a pressão, o álcool desnaturado para os candeeiros a petróleo, a ervilha e a ervilhaca, o sabão e também os produtos de higiene e beleza - tudo se vendia a peso e a litro na mercearia do Sr. Bate-pezinho. Era tudo a granel! 
Entre os momentos de alguma prosperidade, viveram-se outros, que custam recordar. O tempo do racionamento da II Grande Guerra foi um deles. Francisco Miguel Guerreiro conta-nos que "As pessoas tinham as senhas para poderem comprar só aquelas quantidades. Para cada família cabiam 100 gramas de açúcar... foi um momento muito complicado para a mercearia, com lucros baixos, a trabalhar com o meio tostão. Muito trabalho e pouca quantidade: ganhava-se muito pouco". A seguir ao 25 de Abril também foi um período conturbado - foi a crise do bacalhau que coincidiu com a época de natal. Francisco conta-nos que eram poucos os estabelecimentos que vendiam bacalhau em Loulé. Sendo a sua mercearia muito procurada para esse bem, só podiam vender um bacalhau por cliente. "Havia filas de quarenta pessoas lá fora. Entravam dez pessoas de cada vez e fechava-se a porta. Depois de aviadas, saiam pela porta de trás". Apesar das dificuldades, nunca correu o risco de fechar as portas. Vendia-se sempre... não existindo ainda os frigoríficos, até o sal que os peixeiros do mercado utilizavam na salga do peixe saía da sua mercearia - "Comprávamos aos camiões de sal, era coisa que não podia acabar". Nem a viragem dos tempos e o brotar das grandes superfícies intimidaram esta família de merceeiros. No entanto, o avançar da idade de Francisco fê-lo pensar em abandonar o negócio. O filho Manuel Antonio Guerreiro viu nesta crise uma oportunidade: forçado ao desemprego, decidiu, há cinco anos, abraçar o negócio da família. Era necessário manter o antigo freguês, mas também cativar uma nova clientela: com alguma carolice soube aproveitar se do espírito revivalista em voga, reinventar-se e, ao mesmo tempo, manter-se fiel ao conceito de antiga mercearia. Mudou o nome do estabelecimento: a mercearia do Sr. Bate pezinho é agora a Casa Portuguesa, onde o atendimento é personalizado, à boa moda antiga. A venda a granel de alguns bens, os produtos da região, assim como os tais artigos nacionais de marca intemporal são a sua imagem de marca e é o que leva os saudosistas a visitarem a sua loja, assim como o turista, que procura Loulé pela sua tradicionalidade - é tratamento cinco estrelas! Diz-nos com certo orgulho e um brilhozinho nos olhos: "Faço o meu trabalho e acho que é assim que deve ser - as pessoas gostam do conceito e voltam. Cerca de 90% dos nossos artigos não se encontram nos grandes supermercados. O comércio tradicional trabalha assim, há um conhecimento enraizado ao serviço do freguês". 
A Casa Portuguesa continuará a ser para os louletanos o seu espaço de memória, intemporalmente conhecida como a mercearia do Sr. Bate-pezinho... com o tal aroma e aquelas coisas boas. 

Nota:

1. Texto da autoria de Helga Serôdio publicado na Revista Raízes n.º 4 que podem ler na integra aqui